terça-feira, 25 de setembro de 2007

Prefácio que vale o livro

Em março deste ano (2007) fui ao Rio comemorar meu aniversário e decidi, meio na louca, enviar algumas poesias para a atriz e poeta Elisa Lucinda, cujo trabalho poético e de palco admiro muito. Qual não foi a minha surpresa quando, já de volta a Brasília, recebo uma ligação da própria, dizendo-me que gostou muito dos poemas e que toparia escrever o prefácio do meu livro de estréia. Se havia alguma dúvida em publicar, esse foi o empurrão que me atirou à arena. Divido com vocês o maravilhoso prefácio com que Elisa Lucinda me brindou e que abre o "Eu com verso".

O COLECIONADOR DE MEMÓRIAS AFETIVAS

Gosto muito de homens. Gosto de como a sensibilidade lhes cai bem. É bonita a estética do macho. A delicadeza masculina se vale de seu aparente contraste para produzir um efeito deslumbrante no coração de quem a recebe. Se for em forma de poesia, então, essa delicadeza reverbera sem concorrentes. A voz de um homem escrita, refletida, filosofada e emocionada, pertence à categoria luxo. Foi munida desses atributos que a transparente poética de Alessandro Uccello chegou à minha porta. Agradou-me, de cara, o conceito do “Eu com verso”. Não era só um trocadilho; era, sim, o caminho que o autor escolhera para desfilar seu pensamento de estréia na literatura para além do seu quintal. Eis aqui um homem sincero nos ofertando suas conclusões de masculino reflexivo, pensante e sensual. Surpreendeu-me sua graça, sua poesia leve e ao mesmo tempo mordaz. É, mesmo, um poeta filtrando tudo o que vê, seguindo os passos do seu autor no banheiro, na cama, no trabalho, na solidão, no exercício da paternidade, na afetividade geral com o mundo. O resultado é uma feitura poética de muita qualidade. São versos que pulsam e brincam com ritmo, repertório de palavras e doces aliterações.
Alessandro nos toca com a poesia lúcida, que não perde nem o romantismo nem a qualidade da embriaguez. Deliramos com ele; vamos pra cama com ele, testemunhando a ótica da subjetividade do macho, do coração de quem penetra. Como sói acontecer aos que provam dos bons versos, os leitores deste livro hão de provar de muitas descobertas aqui. Há poemas que atingem uma feitura tão rica, tão veterana, um discurso tão bem tecido que aterrissa muito bem o vôo poético desse rapaz. “De coração” é um lindo exemplo:

Teu coração é um casarão de luxo
bem maior do que meu quarto/sala
mas o inquilino é um amor bruxo
que dorme no porão e não fala

Teu coração tem vista para o mar
oito quartos, calefação, varanda
mas o amor pouco ocupa lugar
arrasta as pernas, quase não anda

Abra as portas, pendure quadros nas paredes
arrume a cama, encha os vasos de flor
abra-se

Abra as pernas, derrube todas as paredes
desarrume a cama, encha os olhos de amor
abrace


Alessandro Uccello, com seus versos bem feitos, fortes e delicados, nos reata à candura do divino masculino. Falo divino só pra me referir a um arquétipo do primeiro homem e sua natureza amorosa, natureza de pai que explica em melodia clara, popular e lírica quando a filha pergunta: Papai, como você poesia?
Muitas vezes, a idéia equivocada de que o reino da sensibilidade pertence só ao feminino, faz com que se deixe de ver e de escutar a versão linda, doce e fálica do homem, o macho, o caçador. Essa costura de quem trabalha fora e ao mesmo tempo transita com muita intimidade em um lar, faz com que a gente compreenda, nós mulheres, a nossa dor, a nossa mesma vida pelo ponto de vista do outro. Ele consegue isso muito bem em “Pobrezim”:

Cheguei em casa amarrotado
arrotando as palavras e o vinho
com que você me abarrotou o ouvido
e arrebentou o futuro

Tirei a roupa e deitei no chão
sofrendo no escuro, com pena de mim
chorando como um homem de quarenta
que há vinte anos vive assim
de fim em fim
pobrezim

No outro dia acordei vazio
esqueci você, o vinho, o vizinho
saí, bebi, arrumei outro amor eterno
nem melhor, nem pior: igualzim


Bem, chega. A citação de poemas em apresentações rouba a surpresa preparada para os leitores. Além de que, pode parecer que os poemas citados neste texto sejam superiores aos outros. Não é nada disso, mesmo porque não entendo nada de poemas superiores ou inferiores. Isto não é fixo, está exposto ao tempo e a outros quesitos variantes. Sou apenas uma leitora que também escreve, que adora poesia e beija a poesia que agrada ao seu coração, e que leu esses originais até o fim numa só tarde e ficou louca pra escrever este prefácio, escrito sem esforço, com prazer, embora tão adiado nos seus mutantes prazos.
Nada mais tenho a dizer. Sei que é bem vinda, à minha casa, a poesia nova e veterana desse moço. É bom que homens escrevam abrindo o coração. A humanidade é curiosa para escutá-lo, novo homem. “Eu com verso” conversa mesmo, e, como um bom papo, diz a que veio com começo meio e fim. Que será dessa poesia quando ela amadurecer, se, verde, já está boa assim?

P.S.: Pedi ao autor alguns dados sobre ele, já que não somos amigos e eu não o conhecia. Ele fez um auto-retrato como o mais comum dos homens. Pois mora aí sua sofisticação.


Lisboa, verão ventoso, 18 de julho de 2007.

Elisa Lucinda